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Introdução

A Monadologia (1714) de Gottfried Wilhelm Leibniz

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Em 1714, o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz - o último génio universal do mundo - propôs uma teoria de ∞ mónadas infinitas que, embora aparentemente distante da realidade física e em desacordo com o realismo científico moderno, foi reconsiderada à luz dos desenvolvimentos na física moderna e mais especificamente na não-localidade.

Leibniz, por sua vez, foi profundamente influenciado pelo filósofo grego Platão e pela antiga filosofia cósmica grega. A sua teoria das mónadas apresenta uma notável semelhança com o reino das Formas de Platão como descrito na famosa Alegoria da Caverna de Platão.

A Monadologia (Francês: La Monadologie, 1714) é uma das obras mais conhecidas da filosofia tardia de Leibniz. É um texto breve que apresenta, em cerca de 90 parágrafos, uma metafísica das substâncias simples, ou ∞ mónadas infinitas.

Durante a sua última estadia em Viena, de 1712 a setembro de 1714, Leibniz escreveu dois textos curtos em francês que se destinavam a ser exposições concisas da sua filosofia. Após a sua morte, os Principes de la nature et de la grâce fondés en raison, que se destinavam ao príncipe Eugénio de Saboia, apareceram em francês nos Países Baixos. O filósofo Christian Wolff e colaboradores publicaram traduções em alemão e latim do segundo texto que ficou conhecido como A Monadologia.

A monadologia

Por Gottfried Wilhelm Leibniz, 1714

Principia philosophiæ seu theses in gratiam principis Eu-genii conscriptæ

§ 1

A Mónada, da qual falaremos aqui, não é outra coisa senão uma substância simples, que entra nos compostos; simples, isto é, sem partes (Teod., § 104).

§ 2

E é necessário que existam substâncias simples, pois existem compostos; porque o composto não é outra coisa senão um amontoado ou aggregatum dos simples.

§ 3

Ora, onde não há partes, não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possível. E estas Mónadas são os verdadeiros Átomos da Natureza e, em suma, os elementos das coisas.

§ 4

Também não há dissolução a temer, e não existe qualquer forma concebível pela qual uma substância simples possa perecer naturalmente (§ 89).

§ 5

Pela mesma razão, não há nenhuma maneira pela qual uma substância simples possa começar naturalmente, pois não poderia ser formada por composição.

§ 6

Assim, pode-se dizer que as Mónadas não podem começar nem acabar senão de repente, isto é, não podem começar senão por criação e acabar senão por aniquilação; ao passo que aquilo que é composto começa ou acaba por partes.

§ 7

Também não há meio de explicar como uma Mónada possa ser alterada ou mudada no seu interior por qualquer outra criatura; pois nela não se pode transpor nada, nem conceber qualquer movimento interno que possa ser excitado, dirigido, aumentado ou diminuído lá dentro; como pode acontecer nos compostos, onde há mudanças entre as partes. As Mónadas não têm janelas pelas quais algo possa entrar ou sair. Os acidentes não podem destacar-se nem passear fora das substâncias, como faziam antigamente as espécies sensíveis dos Escolásticos. Assim, nem substância nem acidente pode entrar de fora numa Mónada.

§ 8

No entanto, é necessário que as Mónadas tenham algumas qualidades, caso contrário nem sequer seriam seres. E se as substâncias simples não diferissem pelas suas qualidades, não haveria meio de perceber qualquer mudança nas coisas; pois o que está no composto só pode vir dos ingredientes simples; e as Mónadas, sendo sem qualidades, seriam indistinguíveis umas das outras, já que também não diferem em quantidade: e consequentemente, supondo-se o pleno, cada lugar receberia sempre, no movimento, apenas o equivalente ao que tinha tido, e um estado das coisas seria indiscernível do outro.

§ 9

É necessário mesmo que cada Mónada seja diferente de cada outra. Pois nunca há na natureza dois seres que sejam perfeitamente um como o outro e onde não seja possível encontrar uma diferença interna, ou fundada numa denominação intrínseca.

§ 10

Tomo também como aceite que todo ser criado está sujeito à mudança, e consequentemente também a Mónada criada, e até que esta mudança é contínua em cada uma.

§ 11

Segue-se do que acabámos de dizer que as mudanças naturais das Mónadas provêm de um princípio interno, pois uma causa externa não poderia influir no seu interior (§ 396, § 900).

§ 12

Mas é necessário também que além do princípio da mudança haja um pormenor do que muda, que faça por assim dizer a especificação e a variedade das substâncias simples.

§ 13

Este pormenor deve envolver uma multiplicidade na unidade ou no simples. Pois toda a mudança natural fazendo-se por graus, algo muda e algo permanece; e consequentemente é necessário que na substância simples haja uma pluralidade de afecções e de relações, embora não haja partes.

§ 14

O estado transitório, que envolve e representa uma multiplicidade na unidade ou na substância simples, não é outra coisa senão aquilo a que se chama Percepção, que se deve distinguir da apercepção ou da consciência, como aparecerá em seguida. E é nisto que os Cartesianos erraram muito, tendo considerado como nada as percepções de que não nos apercebemos. Foi isto também que os fez crer que apenas os espíritos eram Mónadas e que não havia almas dos Animais nem outras Entelequias; e que confundiram com o vulgo um longo atordoamento com uma morte rigorosa, o que os fez ainda cair no preconceito escolástico das almas inteiramente separadas, e até confirmou os espíritos mal orientados na opinião da mortalidade das almas.

§ 15

A acção do princípio interno que produz a mudança ou a passagem de uma percepção a outra pode ser chamada Apetição: é verdade que o apetite nem sempre pode alcançar inteiramente toda a percepção para a qual tende, mas obtém sempre algo dela e chega a percepções novas.

§ 16

Nós próprios experimentamos uma multiplicidade na substância simples, quando encontramos que o menor pensamento de que nos apercebemos envolve uma variedade no objecto. Assim, todos aqueles que reconhecem que a alma é uma substância simples devem reconhecer esta multiplicidade na Mónada; e o Senhor Bayle não devia encontrar nisso dificuldade, como fez no seu Dicionário no artigo Rorarius.

§ 17

Somos obrigados, aliás, a confessar que a Percepção e o que dela depende é inexplicável por razões mecânicas, isto é, pelas figuras e pelos movimentos. E fingindo que existe uma Máquina cuja estrutura faça pensar, sentir, ter percepção; podemos concebê-la ampliada conservando as mesmas proporções, de modo que nela se possa entrar como num moinho. E posto isto, ao visitá-la por dentro, não encontraremos senão peças que se empurram umas às outras, e jamais algo que explique uma percepção. Assim, é na substância simples, e não no composto ou na máquina, que a devemos procurar. Também só isso se pode encontrar na substância simples, isto é, as percepções e suas mudanças. É só nisto também que podem consistir todas as Acções internas das substâncias simples (Pref. ***, 2 b5).

§ 18

Poder-se-ia dar o nome de Enteléquias a todas as substâncias simples, ou Mónadas criadas, pois têm em si uma certa perfeição (échousi to entelés), há uma suficiência (autarkeia) que as torna fontes das suas ações internas e, por assim dizer, autómatos incorpóreos (§ 87).

§ 19

Se quisermos chamar Alma a tudo o que tem percepções e apetites no sentido geral que acabo de explicar, todas as substâncias simples ou Mónadas criadas poderiam ser chamadas Almas; mas, como o sentimento é algo mais do que uma simples percepção, concordo que o nome geral de Mónadas e de entelequia seja suficiente para as substâncias simples que só terão isso; e que se chame Almas apenas àquelas cuja percepção é mais distinta e acompanhada de memória.

§ 20

Pois experimentamos em nós mesmos um estado em que não nos lembramos de nada e não temos nenhuma perceção distinta; como quando desmaiamos ou quando somos dominados por um sono profundo sem qualquer sonho. Neste estado, a alma não difere sensivelmente de uma simples Mónada; mas como este estado não é duradouro, e ela se recupera dele, ela é algo mais (§ 64).

§ 21

E não se segue que então a substância simples esteja sem qualquer perceção. Isso não pode ser mesmo pelas razões supramencionadas; pois ela não pode perecer, nem pode subsistir sem alguma afeção que não é outra coisa senão a sua perceção: mas quando há uma grande multidão de pequenas perceções, onde não há nada de distinto, ficamos atordoados; como quando giramos continuamente no mesmo sentido várias vezes seguidas, onde surge uma vertigem que nos pode fazer desmaiar e que não nos deixa distinguir nada. E a morte pode dar este estado aos animais por algum tempo.

§ 22

E como todo estado presente de uma substância simples é naturalmente uma consequência do seu estado precedente, de tal modo que o presente está prenhe do futuro (§ 360);

§ 23

Portanto, visto que ao despertar do atordoamento nos apercebemos das nossas perceções, é necessário que as tenhamos tido imediatamente antes, ainda que não nos tenhamos apercebido delas; pois uma perceção só pode vir naturalmente de outra perceção, assim como um movimento só pode vir naturalmente de outro movimento (§ 401-403).

§ 24

Vê-se por isto que se não tivéssemos nada de distinto e, por assim dizer, de elevado, e de um gosto mais refinado nas nossas perceções, estaríamos sempre no atordoamento. E é este o estado das Mónadas nuas.

§ 25

Também vemos que a Natureza deu perceções elevadas aos animais, pelos cuidados que teve em fornecer-lhes órgãos que reúnem vários raios de luz ou várias ondulações do ar, para os tornar mais eficazes pela sua união. Há algo semelhante no odor, no gosto e no tato, e talvez em quantidade de outros sentidos que nos são desconhecidos. E explicarei em breve como o que se passa na alma representa o que se faz nos órgãos.

§ 26

A memória fornece uma espécie de consecução às almas, que imita a razão, mas que dela deve ser distinguida. É que vemos que os animais, tendo a perceção de algo que os impressiona e do qual tiveram perceção semelhante anteriormente, esperam pela representação da sua memória aquilo que estava ligado nessa perceção precedente e são levados a sentimentos semelhantes aos que tinham tido então. Por exemplo: quando se mostra o bastão aos cães, eles lembram-se da dor que este lhes causou e gritam e fogem (Prélim.6, § 65).

§ 27

E a imaginação forte que os impressiona e comove, vem ou da grandeza ou da multidão das perceções precedentes. Pois frequentemente uma impressão forte faz de uma só vez o efeito de um longo hábito ou de muitas perceções medíocres reiteradas.

§ 28

Os homens agem como os animais, na medida em que as consecuções das suas perceções se fazem apenas pelo princípio da memória; assemelhando-se aos médicos empíricos, que têm uma simples prática sem teoria; e somos apenas empíricos em três quartos das nossas ações. Por exemplo, quando se espera que haja dia amanhã, age-se empiricamente, porque isso sempre aconteceu assim até agora. Só o astrónomo o julga pela razão.

§ 29

Mas o conhecimento das verdades necessárias e eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos faz ter a Razão e as ciências; elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus. E é isto que se chama em nós Alma racional, ou Espírito.

§ 30

É também pelo conhecimento das verdades necessárias e pelas suas abstrações que somos elevados aos atos reflexivos, que nos fazem pensar no que se chama eu e a considerar que isto ou aquilo está em nós: e é assim que ao pensar em nós, pensamos no Ser, na Substância, no simples e no composto, no imaterial e no próprio Deus; concebendo que o que é limitado em nós, é nele sem limites. E estes atos reflexivos fornecem os objetos principais dos nossos raciocínios (Théod., Préf. *, 4, a7)

§ 31

E não se segue que então a substância simples esteja sem qualquer perceção. Os nossos raciocínios são fundados em dois grandes princípios, o da contradição, em virtude do qual julgamos falso o que o envolve, e verdadeiro o que é oposto ou contraditório ao falso (§ 44, § 196).

§ 32

E o da razão suficiente, em virtude do qual consideramos que nenhum facto pode ser verdadeiro ou existente, nenhuma enunciação verdadeira, sem que haja uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo. Ainda que estas razões na maior parte das vezes não nos possam ser conhecidas (§ 44, § 196).

§ 33

Há também dois tipos de verdades, as de Raciocínio e as de Facto. As verdades de Raciocínio são necessárias e o seu oposto é impossível, e as de Facto são contingentes e o seu oposto é possível. Quando uma verdade é necessária, pode-se encontrar a sua razão pela análise, resolvendo-a em ideias e verdades mais simples, até que se chegue às primitivas (§ 170, 174, 189, § 280-282, § 367. Abrégé object. 3).

§ 34

É assim que entre os Matemáticos, os teoremas de especulação e os cânones de prática são reduzidos pela análise às Definições, Axiomas e Postulados.

§ 35

E há, enfim, ideias simples das quais não se pode dar a definição; há também axiomas e postulados, ou numa palavra, princípios primitivos, que não podem ser provados e não necessitam disso; e são as enunciações idênticas, cujo oposto contém uma contradição expressa (§ 36, 37, 44, 45, 49, 52, 121-122, 337, 340-344).

§ 36

Mas a razão suficiente deve encontrar-se também nas verdades contingentes ou de facto, isto é, na sequência das coisas espalhadas pelo universo das criaturas; onde a resolução em razões particulares poderia ir a um detalhe sem limites, devido à variedade imensa das coisas da Natureza e à divisão dos corpos até ao infinito. Há uma infinidade de figuras e de movimentos presentes e passados que entram na causa eficiente da minha escrita presente; e há uma infinidade de pequenas inclinações e disposições da minha alma, presentes e passadas, que entram na causa final.

§ 37

E como todo este detalhe não envolve senão outros contingentes anteriores ou mais detalhados, cada um dos quais necessita ainda de uma análise semelhante para dar razão dele, não se avança mais: e é preciso que a razão suficiente ou última esteja fora da sequência ou séries deste detalhe das contingências, por mais infinito que possa ser.

§ 38

E é assim que a última razão das coisas deve estar numa substância necessária, na qual o detalhe das mudanças está apenas eminentemente, como na fonte: e é isto que chamamos Deus (§ 7).

§ 39

Ora, sendo esta substância uma razão suficiente de todo este detalhe, o qual também está ligado por todo lado; há apenas um Deus, e este Deus é suficiente.

§ 40

Pode-se julgar também que esta substância suprema que é única, universal e necessária, não tendo nada fora dela que seja independente, e sendo uma consequência simples do ser possível; deve ser incapaz de limites e conter tanta realidade quanto é possível.

§ 41

Donde se segue que Deus é absolutamente perfeito; a perfeição não sendo outra coisa senão a grandeza da realidade positiva tomada precisamente, pondo de parte os limites ou fronteiras nas coisas que os têm. E onde não há fronteiras, isto é, em Deus, a perfeição é absolutamente infinita (§ 22, Préf. *, 4 a).

§ 42

Segue-se também que as criaturas têm as suas perfeições pela influência de Deus, mas têm as suas imperfeições da sua própria natureza, incapaz de ser sem limites. Pois é nisso que elas se distinguem de Deus. Esta imperfeição original das criaturas observa-se na inércia natural dos corpos (§ 20, 27-30, 153, 167, 377 e seg.).

§ 43

É também verdade que em Deus está não só a fonte das existências, mas também a das essências, enquanto reais, ou do que há de real na possibilidade. É porque o entendimento de Deus é a região das verdades eternas, ou das ideias das quais elas dependem, e que sem ele não haveria nada de real nas possibilidades, e não apenas nada de existente, mas ainda nada de possível (§ 20).

§ 44

Pois é necessário que se há uma realidade nas essências ou possibilidades, ou nas verdades eternas, esta realidade deve estar fundamentada em algo existente e atual; e consequentemente na existência do Ser necessário, no qual a essência encerra a existência, ou no qual basta ser possível para ser atual (§ 184-189, 335).

§ 45

Assim, só Deus (ou o Ser necessário) tem este privilégio que deve existir se for possível. E como nada pode impedir a possibilidade do que não encerra limites, nenhuma negação, e consequentemente, nenhuma contradição, isso só basta para conhecer a existência de Deus a priori. Provámo-la também pela realidade das verdades eternas. Mas acabámos de a provar também a posteriori pois existem seres contingentes, os quais não poderiam ter a sua razão última ou suficiente senão no ser necessário, que tem a razão da sua existência em si mesmo.

§ 46

Contudo, não se deve imaginar com alguns que as verdades eternas, sendo dependentes de Deus, são arbitrárias e dependem da sua vontade, como Descartes parece ter entendido e depois M. Poiret. Isto só é verdadeiro para as verdades contingentes, cujo princípio é a conveniência ou a escolha do melhor; enquanto as verdades necessárias dependem unicamente do seu entendimento, e são o seu objeto interno (§ 180-184, 185, 335, 351, 380).

§ 47

Assim, Deus sozinho é a unidade primitiva, ou a substância simples originária, da qual todas as Mónadas criadas ou derivadas são produções e nascem, por assim dizer, por Fulgurações contínuas da Divindade de momento a momento, limitadas pela receptividade da criatura, à qual é essencial ser limitada (§ 382-391, 398, 395).

§ 48

Há em Deus a Potência, que é a fonte de tudo, depois o Conhecimento, que contém o detalhe das ideias, e finalmente a Vontade, que faz as mudanças ou produções segundo o princípio do melhor (§ 7,149-150). E é isto que corresponde ao que, nas mónadas criadas, constitui o sujeito ou a base, a faculdade perceptiva e a faculdade apetitiva. Mas em Deus estes atributos são absolutamente infinitos ou perfeitos; e nas Mónadas criadas ou nas entelequeias (ou perfectihabies, como Hermolaüs Barbarus traduzia esta palavra) são apenas imitações, na medida em que há perfeição (§ 87).

§ 49

Diz-se que a criatura age externamente na medida em que tem perfeição, e padece de outra, na medida em que é imperfeita. Assim, atribui-se a ação à Mónada, enquanto tem perceções distintas, e a paixão enquanto tem perceções confusas (§ 32, 66, 386).

§ 50

E uma criatura é mais perfeita que outra, quando nela se encontra o que serve para dar razão a priori do que se passa na outra, e é por isso que se diz que ela age sobre a outra.

§ 51

Mas nas substâncias simples é apenas uma influência ideal de uma mónada sobre a outra, que só pode ter o seu efeito pela intervenção de Deus, na medida em que nas ideias de Deus uma mónada exige com razão que Deus, ao regular as outras desde o início das coisas, tenha consideração por ela. Pois como uma Mónada criada não poderia ter uma influência física sobre o interior de outra, é apenas por este meio que uma pode ter dependência da outra (§ 9, 54, 65-66, 201. Abrégé object. 3).

§ 52

E é por isto que entre as criaturas as ações e paixões são mútuas. Pois Deus, comparando duas substâncias simples, encontra em cada uma razões que o obrigam a acomodar uma à outra; e consequentemente o que é ativo em certos aspectos é passivo segundo outro ponto de consideração: ativo na medida em que o que se conhece distintamente nele serve para explicar o que se passa em outro; e passivo na medida em que a razão do que se passa nele se encontra no que se conhece distintamente em outro (§ 66).

§ 53

Ora, como há uma infinidade de universos possíveis nas Ideias de Deus e que só pode existir um, deve haver uma razão suficiente da escolha de Deus, que o determina a um em vez de outro (§ 8, 10, 44, 173, 196 e s., 225, 414-416).

§ 54

E esta razão só pode encontrar-se na conveniência, ou nos graus de perfeição, que estes mundos contêm; cada possível tendo direito de pretender à existência na medida da perfeição que envolve (§ 74, 167, 350, 201, 130, 352, 345 e s., 354).

§ 55

E é isto que é a causa da existência do melhor, que a sabedoria faz conhecer a Deus, que a sua bondade o faz escolher, e que a sua potência o faz produzir (§ 8,7, 80, 84, 119, 204, 206, 208. Abrégé object. 1, object. 8).

§ 56

Ora esta ligação ou este acomodamento de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras, faz com que cada substância simples tenha relações que exprimem todas as outras, e que seja consequentemente um espelho vivo perpétuo do universo (§ 130,360).

§ 57

E, como uma mesma cidade vista de diferentes lados parece completamente diferente, e é como que multiplicada perspectivamente; acontece do mesmo modo que, pela multidão infinita das substâncias simples, há como que tantos universos diferentes, que não são contudo senão as perspectivas de um só segundo os diferentes pontos de vista de cada Mónada.

§ 58

E é o meio de obter tanta variedade quanto possível, mas com a maior ordem que se possa, isto é, é o meio de obter tanta perfeição quanto possível (§ 120, 124, 241 sqq., 214, 243, 275).

§ 59

Também é apenas esta hipótese (que ouso dizer demonstrada) que eleva como deve ser a grandeza de Deus: é isto que Monsieur Bayle reconheceu, quando no seu Dicionário (artigo Rorarius) fez objeções, onde chegou mesmo a ser tentado a crer que eu dava demasiado a Deus, e mais do que é possível. Mas não pôde alegar nenhuma razão pela qual esta harmonia universal, que faz com que toda a substância exprima exatamente todas as outras pelas relações que tem com elas, fosse impossível.

§ 60

Aliás, vê-se no que acabo de relatar as razões a priori pelas quais as coisas não poderiam ser de outra forma. Porque Deus, ao regular o todo, teve em consideração cada parte, e particularmente cada mónada, cuja natureza sendo representativa, nada a poderia limitar a representar apenas uma parte das coisas; embora seja verdade que esta representação é apenas confusa no detalhe de todo o universo, e só pode ser distinta numa pequena parte das coisas, ou seja, naquelas que são ou as mais próximas, ou as maiores em relação a cada Mónada; caso contrário, cada mónada seria uma Divindade. Não é no objeto, mas na modificação do conhecimento do objeto, que as mónadas são limitadas. Todas tendem confusamente para o infinito, para o todo; mas são limitadas e distinguidas pelos graus das perceções distintas.

§ 61

E os compostos simbolizam nisso com os simples. Pois, como tudo está pleno, o que torna toda a matéria ligada, e como no pleno todo o movimento produz algum efeito sobre os corpos distantes, à medida da distância, de modo que cada corpo é afetado não só por aqueles que o tocam, e ressente-se de alguma forma de tudo o que lhes acontece, mas também por seu intermédio ressente-se ainda daqueles que tocam os primeiros, pelos quais é tocado imediatamente: segue-se que esta comunicação vai a qualquer distância que seja. E, consequentemente, todo corpo ressente-se de tudo o que se faz no universo; de tal forma que aquele que vê tudo poderia ler em cada um o que se faz em toda a parte e mesmo o que se fez ou se fará; observando no presente o que está distante, tanto segundo os tempos como segundo os lugares: sumpnoia panta, dizia Hipócrates. Mas uma Alma só pode ler em si mesma o que nela está representado distintamente, ela não poderia desenvolver de uma só vez todas as suas dobras, pois elas vão até ao infinito.

§ 62

Assim, embora cada mónada criada represente todo o universo, ela representa mais distintamente o corpo que lhe está particularmente afetado e do qual constitui a enteléquia: e como este corpo exprime todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno, a alma representa também todo o universo ao representar este corpo, que lhe pertence de uma maneira particular (§ 400).

§ 63

O corpo pertencente a uma Mónada, que é a sua enteléquia ou Alma, constitui com a enteléquia aquilo a que podemos chamar um vivente, e com a alma aquilo a que chamamos um animal. Ora, este corpo de um vivente ou de um animal é sempre orgânico; pois toda a Mónada, sendo um espelho do universo à sua maneira, e estando o universo regulado numa ordem perfeita, é necessário que haja também uma ordem no representante, isto é, nas perceções da alma, e consequentemente no corpo, segundo a qual o universo nele é representado (§ 403).

§ 64

Assim, cada corpo orgânico de um vivente é uma espécie de máquina divina, ou de um autómato natural, que supera infinitamente todos os autómatos artificiais. Porque uma máquina feita pela arte do homem não é máquina em cada uma das suas partes. Por exemplo: o dente de uma roda de latão tem partes ou fragmentos que já não são algo artificial e não têm mais nada que indique máquina em relação ao uso a que a roda estava destinada. Mas as máquinas da natureza, isto é, os corpos vivos, são ainda máquinas nas suas menores partes, até ao infinito. É isto que faz a diferença entre a Natureza e a arte, isto é, entre a arte Divina e a nossa (§ 134, 146, 194, 483).

§ 65

E o autor da natureza pôde praticar este artifício divino e infinitamente maravilhoso, porque cada porção da matéria não é apenas divisível ao infinito como os antigos reconheceram, mas ainda subdividida atualmente sem fim, cada parte em partes, das quais cada uma tem algum movimento próprio, caso contrário seria impossível que cada porção da matéria pudesse exprimir todo o universo (Prelim. [Disc. d. l. conform.], § 70. Teod., §195).

§ 66

Por onde se vê que há um mundo de criaturas, de viventes, de animais, de enteléquias, de almas na menor parte da matéria.

§ 67

Cada porção da matéria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas, e como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota dos seus humores é ainda um tal jardim, ou um tal lago.

§ 68

E embora a terra e o ar interceptados entre as plantas do jardim, ou a água interceptada entre os peixes do lago, não sejam planta, nem peixe; contêm ainda assim, mas na maioria das vezes de uma subtileza para nós impercetível.

§ 69

Assim, não há nada de inculto, de estéril, de morto no universo, nenhum caos, nenhuma confusão senão em aparência; mais ou menos como pareceria num lago a uma distância na qual se veria um movimento confuso e fervilhante, por assim dizer, de peixes do lago, sem discernir os próprios peixes.

§ 70

Vê-se por aí que cada corpo vivo tem uma enteléquia dominante que é a alma no animal; mas os membros deste corpo vivo estão cheios de outros viventes, plantas, animais, cada um dos quais tem ainda a sua enteléquia, ou a sua alma dominante.

§ 71

Mas não se deve imaginar com alguns, que tinham mal interpretado o meu pensamento, que cada alma tem uma massa ou porção da matéria própria ou afetada a ela para sempre, e que possui consequentemente outros viventes inferiores, destinados sempre ao seu serviço. Pois todos os corpos estão num fluxo perpétuo como rios; e partes entram e saem continuamente.

§ 72

Assim, a alma só muda de corpo pouco a pouco e por graus, de modo que nunca é despojada de uma só vez de todos os seus órgãos; e há frequentemente metamorfose nos animais, mas nunca metempsicose nem transmigração das Almas: também não há Almas completamente separadas, nem génios sem corpo. Só Deus está inteiramente separado.

§ 73

É isto que faz também com que nunca haja nem geração inteira, nem morte perfeita tomada em rigor, consistindo na separação da alma. E o que chamamos Gerações são desenvolvimentos e crescimentos; como o que chamamos mortes, são envolvimentos e diminuições.

§ 74

Os filósofos ficaram muito embaraçados sobre a origem das formas, enteléquias, ou Almas; mas hoje, quando se percebeu, por pesquisas exatas feitas sobre as plantas, os insetos e os animais, que os corpos orgânicos da natureza nunca são produzidos de um caos ou de uma putrefação; mas sempre pelas sementes, nas quais havia sem dúvida alguma preformação; julgou-se que não só o corpo orgânico já estava lá antes da conceção, mas ainda uma alma neste corpo, e em suma o próprio animal; e que por meio da conceção este animal foi apenas disposto a uma grande transformação para se tornar um animal de outra espécie.

§ 75

Os animais, dos quais alguns são elevados ao grau dos maiores animais por meio da conceção, podem ser chamados espermáticos; mas aqueles dentre eles que permanecem na sua espécie, isto é, a maioria, nascem, multiplicam-se e são destruídos como os grandes animais, e há apenas um pequeno número de eleitos que passa a um maior teatro.

§ 76

Mas isto era apenas metade da verdade: julguei então que se o animal nunca começa naturalmente, também não acaba naturalmente; e que não só não haverá geração, mas também nenhuma destruição inteira, nem morte tomada em rigor. E estes raciocínios feitos a posteriori e tirados das experiências concordam perfeitamente com os meus princípios deduzidos a priori como acima.

§ 77

Assim pode-se dizer que não só a alma (espelho de um universo indestrutível) é indestrutível, mas ainda o próprio animal, embora a sua máquina pereça frequentemente em parte, e abandone ou tome despojos orgânicos.

§ 78

Estes princípios deram-me meios de explicar naturalmente a união ou conformidade da alma e do corpo orgânico. A alma segue as suas próprias leis e o corpo também as suas; e encontram-se em virtude da harmonia preestabelecida entre todas as substâncias, pois são todas representações de um mesmo universo.

§ 79

As almas agem segundo as leis das causas finais por apetições, fins e meios. Os corpos agem segundo as leis das causas eficientes ou dos movimentos. E os dois reinos, o das causas eficientes e o das causas finais, são harmónicos entre si.

§ 80

Descartes reconheceu que as almas não podem dar força aos corpos, porque há sempre a mesma quantidade de força na matéria. No entanto, acreditava que a alma podia mudar a direção dos corpos. Mas isso foi porque no seu tempo não se conhecia a lei da natureza, que também implica a conservação da mesma direção total na matéria. Se ele a tivesse notado, teria chegado ao meu Sistema da harmonia preestabelecida.

§ 81

Este Sistema faz com que os corpos ajam como se (por impossível) não houvesse almas; e que as Almas ajam como se não houvesse corpos; e que ambos ajam como se um influenciasse o outro.

§ 82

Quanto aos Espíritos ou Almas racionais, embora eu considere que há no fundo a mesma coisa em todos os seres vivos e animais, como acabámos de dizer (a saber, que o animal e a alma só começam com o mundo e não terminam também senão com o mundo), há contudo algo de particular nos Animais racionais, que os seus pequenos Animais espermáticos, enquanto são apenas isso, têm somente almas ordinárias ou sensitivas; mas desde que aqueles que são eleitos, por assim dizer, chegam por uma conceção atual à natureza humana, as suas almas sensitivas são elevadas ao grau da razão e à prerrogativa dos Espíritos.

§ 83

Entre outras diferenças que existem entre as Almas ordinárias e os Espíritos, das quais já assinalei uma parte, há ainda esta: que as almas em geral são espelhos vivos ou imagens do universo das criaturas; mas os espíritos são ainda imagens da própria Divindade, ou do próprio autor da natureza: capazes de conhecer o sistema do universo e de imitar algo dele através de amostras arquitetónicas; sendo cada espírito como uma pequena divindade no seu departamento.

§ 84

É isto que faz com que os Espíritos sejam capazes de entrar numa espécie de Sociedade com Deus, e que ele seja para eles não apenas o que um inventor é para a sua Máquina (como Deus o é em relação às outras criaturas), mas também o que um Príncipe é para os seus súbditos, e mesmo um pai para os seus filhos.

§ 85

De onde é fácil concluir que o conjunto de todos os Espíritos deve compor a Cidade de Deus, isto é, o mais perfeito Estado que seja possível sob o mais perfeito dos Monarcas.

§ 86

Esta Cidade de Deus, esta Monarquia verdadeiramente universal é um Mundo Moral no mundo Natural, e é o que há de mais elevado e divino nas obras de Deus: e é nele que consiste verdadeiramente a glória de Deus, pois não haveria glória se a sua grandeza e bondade não fossem conhecidas e admiradas pelos espíritos. É também em relação a esta Cidade divina que ele tem propriamente Bondade, enquanto que a sua sabedoria e poder se mostram em toda parte.

§ 87

Como estabelecemos acima uma Harmonia perfeita entre dois Reinos naturais, um das causas Eficientes, outro das Finais, devemos notar aqui ainda uma outra harmonia entre o reino Físico da Natureza e o reino Moral da Graça, isto é, entre Deus considerado como Arquitecto da Máquina do universo, e Deus considerado como Monarca da Cidade divina dos Espíritos (§ 62, 74, 118, 248, 112, 130, 247).

§ 88

Esta Harmonia faz com que as coisas conduzam à Graça pelos próprios caminhos da Natureza, e que este globo, por exemplo, deva ser destruído e reparado pelas vias naturais nos momentos que o exige o governo dos Espíritos; para o castigo de uns e a recompensa de outros (§ 18 sqq., 110, 244-245, 340).

§ 89

Pode-se dizer ainda que Deus como Arquiteto satisfaz em tudo Deus como legislador; e que assim os pecados devem trazer consigo a sua punição pela ordem da natureza e em virtude da própria estrutura mecânica das coisas; e que do mesmo modo as belas ações atrairão as suas recompensas por vias mecânicas em relação aos corpos; embora isto não possa nem deva acontecer sempre de imediato.

§ 90

Enfim, sob este governo perfeito não haveria nenhuma boa Ação sem recompensa, nenhuma sem castigo: e tudo deve resultar para o bem dos bons; isto é, daqueles que não são descontentes neste grande Estado, que confiam na Providência, depois de terem cumprido o seu dever, e que amam e imitam, como deve ser, o Autor de todo bem, comprazendo-se na consideração das suas perfeições segundo a natureza do puro amor verdadeiro, que faz ter prazer na felicidade daquilo que se ama. É isto que faz trabalhar as pessoas sábias e virtuosas em tudo o que parece conforme à vontade divina presumível ou antecedente; e contentarem-se, no entanto, com o que Deus faz acontecer efetivamente pela sua vontade secreta, consequente e decisiva; reconhecendo que, se pudéssemos entender suficientemente a ordem do universo, encontraríamos que ela supera todos os desejos dos mais sábios, e que é impossível torná-la melhor do que é; não somente para o todo em geral, mas ainda para nós mesmos em particular, se estivermos ligados, como deve ser, ao Autor do todo, não apenas como ao Arquiteto e à causa eficiente do nosso ser, mas ainda como ao nosso Mestre e à causa final que deve constituir todo o objetivo da nossa vontade, e pode sozinho fazer a nossa felicidade (Préf. *, 4 a b14. § 278. Préf. *, 4 b15).

FIM

14 Édit. Erdm., p. 469.
15 Édit. Erdm., p. 469 b.


Lua

Filosofia Cósmica

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